sábado, 19 de março de 2011

Integralidade e prática social - Como se define e se constrói a idéia de Integralidade pela prática social?

Roseni Pinheiro coordena, conjuntamente com Ruben Araújo de Mattos, o LAPPIS Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde.

Como se define e se constrói a idéia de Integralidade pela prática social?
Seguindo a idéia do Ruben Mattos, nós partimos do pressuposto de que a Integralidade é um termo polissêmico, com diferentes sentidos e usos. A definição legal diz que "Integralidade é a integração de atos preventivos, curativos, individuais e coletivos, em cada caso dos níveis de complexidade". Já pela perspectiva dos usuários, a ação integral tem sido freqüentemente associada ao tratamento digno, respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo. Esses sentidos se aproximam da idéia de Integralidade que nós defendemos: um termo plural, ético e democrático. Na revisão bibliográfica de nossos estudos e disciplinas, verificamos que havia pouquíssimas referências sobre o que era Integralidade. Que ela era sempre reduzida à definição legal ou a outra sem qualquer caráter operatório, o que fazia com que caísse numa certa abstração, desprovida de sentidos. Como construção e prática social, a Integralidade ganha riqueza e expressão, porque acaba sendo um valor que as pessoas defendem — todo mundo quer minimamente ser bem tratado, ter acesso aos serviços de saúde e com qualidade — e no qual, ao mesmo tempo, elas imprimem sua experiência de vida. O mote do projeto Integralidade, que depois gerou o LAPPIS, era a idéia de superar uma forma de fazer política através de modelos que requerem condições ideais e que, portanto, nunca se realizam completamente. A Integralidade é um termo muito rico, que permite iluminar as possibilidades de relações, porque elas existem, em especial, no cotidiano dos sujeitos nas instituições, onde diferentes saberes e práticas interagem o tempo todo. Quando essa interação — repleta de contradição que, num espaço democrático, se reverte em construção e transformação — é compreendida e concedida pelos sujeitos, a Integralidade ganha uma noção própria naquele contexto ou experiência.
No entanto, é certo que a idéia e a prática da Integralidade não são novas...
Nós não dissemos que nunca existiu a atenção integral, apenas buscamos ferramentas metodológicas e conceituais capazes de apreender e conceber uma compreensão da experiência das pessoas que tenha a ver com Integralidade em diferentes contextos. Escolhemos a prática porque entendemos que é no cotidiano que a política se materializa. A nossa história de institucionalização das políticas está pautada muito na ordem e na regra, com grande ênfase na tecnocracia, o que é comum no mundo todo. O problema é que, quando se toma isso como o único parâmetro, tenta-se fazer valer aquilo que foi idealizado, ignorando os contextos e os sujeitos inseridos. Eu acho que o SUS tem um projeto político que precisa ser encampado pelos profissionais e pelos pesquisadores. E, necessariamente, vai ter que acontecer uma interação. Quando optamos por analisar as experiências como campo de construção da Integralidade, queremos ver as transformações, os efeitos e as repercussões que ocorreram. Uma experiência pode ser diferente da outra, mas isso não quer dizer que todo mundo que evoca a Integralidade esteja praticando Integralidade. Se pegarmos currículos da graduação, por exemplo, muita gente se acha ‘integral’ só porque põe o aluno duas horas por semana para trabalhar na comunidade da favela. Não é isso! Falamos de um conjunto de práticas que defendem um grupo de valores que precisam ser exercitados dia a dia. E, no caso da formação, é preciso que haja ferramentas pedagógicas que dêem aos alunos condições para desenvolver habilidades e saber manejar o cuidado em saúde como um valor e um instrumento de construção da Integralidade. Eu trabalho a Integralidade como uma construção em dois planos, o sistêmico e o individual. Um está relacionado com a atenção como política e a rede de serviços de saúde; o outro tem a ver com a questão do cuidado, com a incorporação de novas tecnologias assistenciais que prestam atendimento de qualidade ao usuário.
O que a valorização da prática (social) representa nesse contexto?
Eu espero que um dia a prática do cotidiano seja de fato a ferramenta de emancipação e liberdade tanto do conhecimento científico — que está aprisionado no método que o legitima e lhe confere autoridade — quanto da própria sociedade, para que ela possa discutir que saber tem que ser dado a ela. Quem sabe melhor o que um cateter pode proporcionar de bom ou de ruim ao paciente renal crônico do que o próprio paciente? No modelo atual, essas coisas não são consideradas, o usuário só serve para verificação de coisas. É uma cobaia. E a mesma coisa foi feita com a prática. Na construção do conhecimento, a prática sempre foi um lugar de verificação de idéias, nunca de autoria.


Como se deu a criação do LAPPIS?
Em 2000, nós montamos um projeto chamado ‘Integralidade, saberes e práticas no cotidiano dos serviços de saúde’, com o objetivo de analisar os elementos constitutivos desse termo. Verificamos a recorrência dessa palavra e vimos que ela era muito utilizada para justificar coisas boas, mas não conseguia abrigar uma noção. A questão é que o termo Integralidade foi cunhado em determinada conjuntura: não existe no dicionário, não tem tradução para outros idiomas. Foi criado num contexto específico, de criação do SUS. Existe atenção integral – à saúde da mulher, da criança – há mais de 20 anos. O que estamos inaugurando é a discussão desse termo no seu contexto, uma tentativa de criar uma gramática civil sobre ele. Estamos buscando sistematizar a produção relacionada a esse tema, os seus usos e sentidos atribuídos pelos sujeitos nas instituições de saúde. Junto com outros princípios, como eqüidade, descentralização, universalidade e participação social, ele elenca um conjunto de valores que precisam ser defendidos para que a política do SUS se materialize. E o princípio da Integralidade faz o nexo constitutivo entre o cuidado e a organização da atenção. Isso verificado, esse trabalho originou alguns textos para a construção de uma coletânea, que foi lançada em dezembro de 2001 – resultado de uma trajetória de discussão dos sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado. Outro produto desse conjunto de atividades foi o Seminário Integralidades, que teve 45 pessoas na sua primeira edição.
O LAPPIS, então, por um lado, é devedor de toda essa construção mas, por outro, vem apontar para uma nova direção?
Sim. A discussão foi superinteressante porque mantivemos nossa preocupação de retomar a responsabilidade social da universidade de refletir com os serviços. Existe um lado muito vivo do projeto Integralidades, e agora do LAPPIS, que é a relação com diferentes instituições de ensino, serviços e movimentos sociais, sobre a formulação e construção das pautas das políticas. No segundo Seminário Integralidades, nós já reunimos 100 pessoas e começamos a trabalhar os resultados da pesquisa numa perspectiva mais ampliada, enquanto o projeto mesmo trabalha com experiências locais. Temos alguns critérios relacionados a programas que se apresentam como fomentadores de Integralidade, como, por exemplo, o conhecido e cobiçado Saúde da Família. Se você parar para pensar, é complicado ter Integralidade da família quando não existe família nos moldes tradicionais, no domicílio quando as pessoas não têm casa, Integralidade na equipe se o agente comunitário vai disputar saberes legitimados socialmente no meio da interlocução com os outros profissionais. Esses são alguns dos pontos críticos que requerem a nossa atenção. Enfim, o resultado desse processo é que começamos a ampliar o leque de atividades do projeto e crescemos. As pessoas se identificaram com nossa forma aberta de conceituar e trabalhar. Percebemos que estávamos respondendo perguntas que as pessoas não podiam calar e, a partir daí, começamos a criar uma frente de interlocução no governo federal, estadual e, em alguns momentos, até no municipal, além de em outros espaços públicos. Vimos, então, que era preciso criar um programa de estudos. Porque quando você começa a diversificar, percebe que Integralidade é muito maior do que se imagina. Mas, do ponto de vista da Academia, ela precisa ter um limite e ele foi posto da seguinte forma: criamos um Laboratório de Pesquisa sobre Práticas de Integralidade. O LAPPIS realiza um programa de estudos com um colegiado de pesquisadores de diferentes instituições, entre os quais estão o Centro de Saúde Escola Butantã de São Paulo, a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal Fluminense (UFF), o Instituto Franco Basaglia (IFB), e agora o Ministério da Saúde. É um projeto de fato coletivo: a idéia é que cada um debruce sobre o que já produziu até hoje e pense a relação disso com a Integralidade. Temos uma grande preocupação, que está na nossa origem, de sistematizar a produção de conhecimento sobre Integralidade, a partir de experiências inovadoras do SUS. Eu nunca deixo de citar a influência do grupo ‘Racionalidades Médicas’, do CNPq, coordenado pela mestre Madel Luz, que é, no Instituto de Medicina Social da UERJ, o embrião de várias intervenções e maneiras de pensar sobre a construção de saberes e práticas em saúde.
Como um laboratório de ensino e pesquisa, acadêmico, pode fornecer subsídios para a formulação de políticas públicas?
Desde a primeira coletânea, nós temos influenciado muito. Participamos de mesas e conferências com os executores da política. A idéia de nós sermos ouvidos e ouvirmos que o que estamos falando vai ao encontro dos valores que as pessoas defendem é muito importante. Eu e Ruben praticamente não vimos o congresso da Abrasco, participando de conferências e oferecendo um curso sobre o tema. O curso sobre Integralidade que nós oferecemos foi o que teve o maior número de participantes, 78 pessoas. A possibilidade de acolhimento da política está sendo muito grande. Por outro lado, a nossa produção está sendo indicada por muitos concursos de diversas áreas da saúde e também como bibliografia de pós-graduação na área de saúde coletiva. Isso também é o reconhecimento do nosso trabalho e de estarmos atuando no processo de construção da política. Seguindo a linha do Foucault, acho que a universidade tem que ir em defesa da sociedade, e não o contrário. O Estado é um momento provisório da própria sociedade civil. Essa é a minha compreensão de Estado no sentido gramsciniano do termo. Assim como não admito dicotomias como saúde e doença, cuidado e atenção, ação preventiva e curativa, individual e coletivo, seria incoerente eu aceitar a posição confortável de dizer que Estado é uma coisa e a sociedade civil é outra. A definição de sociedade civil, seguindo com o Gramsci, é que ela é uma arena privilegiada de luta, uma esfera do ser social onde se dá uma intensa luta pela hegemonia, e precisamente por isso, ela não pode ser ‘outro’ do Estado, mas sim, juntamente com a sociedade política, um dos seus elementos constitutivos e constituintes de suas ações. O par conceitual sociedade civil/Estado deve ser concebido como uma unidade na diversidade e, portanto, não é possível alimentar uma dicotomia radical por uma ênfase maniqueísta de que o Estado é tudo de ruim e a sociedade civil é tudo de bom, ou vice-versa. Isso não ajuda a pensar política, quanto mais pensar a Integralidade como potência na construção de políticas mais justas e solidárias. Caso contrário, estaremos correndo o risco de criar mais espaços de exclusão social.
A Saúde tem um importante papel para a reversão dessa compreensão, não?
A saúde é o único campo social que inventou, no Brasil, um sistema para ir na contramão desse processo de neoliberalização da política de Estado. Num Estado democrático, os movimentos sociais têm legitimidade para reivindicar e disputar a pauta de investimento do governo para atender suas demandas. Um exemplo concreto é a resposta governamental à AIDS, implementada no país e considerada mundialmente como uma política exitosa. Hoje nós defendemos que a política de Aids é uma experiência exitosa de Integralidade, porque seus efeitos repercutem em todos os níveis do Sistema. O movimento de Aids está discutindo o processo de construção da política, controlando e intervindo sobre ela, o que não acontece com os demais movimentos que demandam ações de saúde. A construção social das respostas às demandas dos portadores de HIV foi feita coletivamente na perspectiva de integração de saberes e práticas, a partir de uma participação ativa dos sujeitos envolvidos.
Os movimentos sociais não ligados a grupos específicos também têm esse papel fundamental na condução das políticas de saúde?
Eu acho que um Estado democrático depende de as pessoas se organizarem. O movimento de Aids é mais bem sucedido do que o de mulheres, por exemplo, porque eles se organizam e trabalham literalmente com a base. O fato é que ter atenção integral vai requerer uma organização muito grande e um repensar desses movimentos. Todas as pessoas estão se submetendo a algum nível de discriminação negativa e eu acho que a pior delas é a da pobreza. Eu defendo a Integralidade como um valor democrático que necessariamente retoma uma participação política intensa, em movimentos organizados ou não. Movimentos com a presença daquilo que o Gramsci chamaria de um intelectual orgânico, que não está somente na Academia, mas pode ser a dona de casa que está interferindo definitivamente para a construção da sociedade. Um bom exemplo é a terapêutica, uma parte importante do LAPPIS, da qual eu me ocupo. Cada vez mais as terapias não-convencionais estão invadindo os serviços, como uma expressão de demanda da sociedade civil. E é preciso responder a isso, às vezes até dentro da universidade. Já existem instituições de ensino que aderiram ao exercício dessas práticas Não se pode achar que necessariamente aquilo que aprendemos nos bancos das universidades seja o melhor para a população. Ela pode dizer que não é. Por isso, tenho trabalhado a definição de Integralidade como a ação social de interação democrática entre sujeitos no cuidado, em qualquer nível do serviço de saúde.


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